Parkour é uma forma de escalar e ocupar a cidade

Um passo largo, um pé na quina da mureta. Outro passo mais largo e é o topo da escadaria. Os dois joelhos são flexionados para amortecer. Tudo isso em quatro segundos.

De maneira simples, parkour é a arte do deslocamento pela cidade e trata de ir do ponto A ao B o mais rápido e eficientemente possível, fazendo o corpo interagir com o espaço público. Nessa lógica, é mais fácil pular obstáculos numa linha reta do que fazer desvios.

Nascido nas ruas, a prática faz os movimentos se integrarem à arquitetura do espaço. Assim, fazer parkour tem relação com reconhecer o território, encarar desafios sempre diferentes — porque um lugar nunca é igual ao outro — e se adaptar a eles.

A gente absorve muito do que o ambiente apresenta de possibilidades, por isso opta por treinar mais na rua do que na academia. É uma questão de você sair da sua área de conforto. – Catiele Senciel, 24 anos.

Parkour tem tudo a ver com as ruas. Além de ocupar a cidade, você fortalece o corpo e a mente.Escalar, agarrar e pular o que está na rua permite adquirir novos olhares sobre lugares e objetos que não notamos, mesmo que vejamos todos os dias. “O que para as pessoas é só um monumento que nem vão ver, para mim é algo que posso utilizar para passar uma barreira, para fazer um movimento”, diz Fernanda Mendes, de 19 anos.

Parkour também traz uma relação diferente com o espaço urbano.

A gente sente mais a cidade porque tem de estar aqui vivendo, tem de prestar atenção e, assim, a gente acaba conhecendo mais o ambiente.

Monumentos, moradores de rua e força do coletivo
Olhando de fora, como fiz em um treino na Praça da Sé, no centro de São Paulo, parece fácil subir numa mureta com um impulso só. E a prática, em geral, parece simples.

O treino conjunto é em fila indiana, um comanda, os outros seguem e a sequência vai evoluindo. O primeiro cria um movimento simples: subir e descer um muro baixo. Os demais seguem e repetem três vezes.

Quem vem atrás apura o olhar para encontrar outros obstáculos a serem explorados e elabora algo mais intenso. Eles escalam um chafariz abandonado em um salto. Pulam para dentro, correm. Escalam a parede mais alta, no fundo. A sequência já parece algo mais difícil.

Gabrielle, de 15 anos, começou há 11 meses e vê o parkour como uma motivação nos exercícios e na vida. “Antes, eu não conseguia fazer as coisas, aí sentava e ficava parada, mas agora eu mudei bastante, treino e quando não consigo, tento de novo. Para a vida, é da mesma forma.”

Foto: Lucas Correa Silva
Tracers no obelisco do Largo da Memória. Foto: Lucas Correa Silva

O nível sobe de patamar e a fila chama cada vez mais atenção na praça. Quem passa, observa os movimentos, e alguns moradores de rua se levantam para acompanhar de perto. Quando alguém ultrapassa uma dificuldade que tem, eles aplaudem. Quando o movimento é simples, eles tentam imitar as façanhas. Aquela frase da Fernanda sobre a relação com o espaço público passa a fazer mais sentido.

Praticante se pendura em paredão a cerca de 3 metros do chão

Uma das meninas sobe em uma mureta. Fixa o olhar e calcula a distância. Concentrada, ela flexiona os joelhos e salta enquanto estende os braços acima da cabeça. Só os dedos alcançam o topo do paredão, que atinge uns três metros de altura, suspenso do chão (foto acima). Com força, dobra as pernas e vai colocando os joelhos na altura do peito.

Pendurada, ela se movimenta mão ante mão, da direita para a esquerda e vice-versa, encarando outra dificuldade: um lado do paredão é mais alto do que o outro. Ali, aparece outra característica forte do parkour: a superação.

Técnica para todos
Os circuitos com saltos e rolamentos no chão lembram mesmo as técnicas militares do parcours du combattant (percurso do combatente, em tradução livre), de onde veio o parkour. No final da década de 1980, o francês David Belle se juntou a uns amigos e adaptou para o meio urbano essas técnicas que aprendeu com o pai, o vietnamita Raymond Belle.

Na internet, há vários vídeos de David falando sobre a atividade e a relação dela com as ruas. A ideia é que qualquer um possa praticar, mas tem teoria e prática para fazer isso de um jeito seguro. Saber amortecer o impacto, fortalecer pernas e braços e conhecer as técnicas para facilitar os movimentos, como escalar os muros, são parte disso.

A prática chegou ao Brasil com mais intensidade há cerca de 10 anos e hoje tem academia especializada e uma galera reunida por meio do Facebook. A página Parkour Brazil tem mais de 10.400 curtidas e há grupos apenas para marcar treinos como o de São Paulo, com 2.285 membros.

Jean Wainer, diretor da primeira academia de parkour do Brasil, com 350 alunos, explica que o parkour tem técnica, mas não é esporte, pois não há regras nem competições.

É semelhante à essência das artes marciais, mas a diferença é que não há inimigo — a luta é consigo mesmo, nos obstáculos e muros da vida. É sempre procurar desafios e se tornar mais forte no físico, no caráter e na vida em geral.

Minas no parkour
Foi a liberdade da prática que chamou a atenção da Ingrid Pasqualino, de 21 anos, que faz parkour há três anos e largou o kung fu pela atividade.

E em nome da liberdade das minas, ela ajudou a organizar o 2º Encontro Regional de Parkour Feminino, esse que ocorreu na Praça da Sé. “Às vezes, elas ficam com vergonha de treinar com os meninos.”

Mas os caras, chamados de tracers, também compareceram e acompanharam os circuitos criados por elas, as traceuses, durante as três horas de treino.

Os meninos se admiram quando uma garota faz um movimento que eles ainda não fazem. “Olha só, pra quê tudo isso, mano?”, diziam, enquanto uma menina elevava a perna reta paralela ao corpo e a segurava acima da cabeça.

Dos meninos que não praticam, elas notam outra coisa. “Eles não estão acostumados a ver isso. Eles estão acostumados a andar em linha reta, desviar de obstáculos, e a gente gosta de analisar, pular e segurar o obstáculo. Eles olham e falam: ‘nossa, por que ela está fazendo isso?’, mas não é preconceito, é mais um estranhamento”, Ingrid acredita.

Para Fernanda, o estranhamento é que é estranho.

A gente está meio que lutando contra os nossos medos, você fica mais corajosa para a vida, para tentar as coisas.

Uma das tracers, de 19 anos, conheceu o parkour por meio do namorado e sente o machismo dentro de casa. Ela começou acompanhando os treinos dele e foi entrando aos poucos, primeiro com movimentos simples e agora tenta outros mais avançados.

Meu pai enche o saco que faço parkour. Ele acha estranho porque pensa que sou mais frágil que meu namorado.

A marcação em casa é tão séria e cerrada que ela pediu para não ter o nome divulgado.

Parkour — como tudo na vida — é para meninos e meninas. E prega a liberdade: é uma prática sem regras, nivelamento ou separação. Para ampliar ainda mais o espaço, não tem “ser melhor ou pior”. Cada um é a referência para si mesmo, responsável pelo próprio desenvolvimento e livre para buscar novos desafios.

Esse material foi originalmente publicado no extinto site Na Responsa!