Histórias em quadrinhos não são coisa de criança

As histórias em quadrinhos vão muito além dos gibis infantojuvenis ou dos mercados que ganham milhões com histórias de super-heróis e vilões.

Desde que o cartunista norte-americano Richard Outcault criou o Yellow Kid (Menino Amarelo, em tradução livre), em 1895, e formalizou a linguagem e características das HQs como a conhecemos hoje, elas deixaram de ser apenas entretenimento e se tornaram meios de discutir assuntos mais sérios, como política, sociedade e religião.

‘The Yellow Kid’. Foto: Wikimedia Commons

Espaço para discutir
Tem quem veja as HQs como o melhor formato para fazer um retrato social em relação a outras narrativas. “A literatura requer imaginação do leitor para construir imagens, e isso é bom, é uma ferramenta útil. O cinema, porém, tira a imaginação, pois coloca a imagem como quer que seja transmitida, e isso é um problema. A HQ é um intermédio entre os dois, e o desenho é representacional, não é o real, então dá para imaginar também”, analisa o jornalista e designer Angelo Dias, de 25 anos, que se aventura em roteiros de HQs.

“Eu gosto bastante de personagens e histórias que nos levam a refletir sobre algo do mundo real”, diz Túlio Santos, de 18 anos, que gosta de HQs de ficção e histórias heroicas, mas com “personagens mais reais”.

Túlio está lendo Ms. Marvel, uma jovem muçulmana com poderes de elasticidade, mas que encara o mundo de forma mortalmente comum. Ela também conta como lida com alguns preconceitos em relação à religião.

Nas sagas da Marvel e DC Comics, editoras famosas pelos heróis e vilões criados, Túlio percebe discussões políticas e sociais por trás das aventuras, como em Guerra Civil, de Mark Millar.

Questões profundas
Quando se fala sobre temas mais profundos, o roteirista de quadrinhos Rob Gordon diz que existe certo preconceito em relação às HQs de super-heróis, mas é possível tratar desses assuntos: depende da qualidade do material, inteligência e sensibilidade do roteiro.

“Eu já li algumas HQs de super-heróis que levantam questionamentos sobre a sociedade de forma mais competente que muitas HQs que possuem justamente essa proposta.”

Um dos trabalhos de Gordon é a Terapia, que fala da busca pelo autoconhecimento por meio da vida de um jovem comum com cerca de 20 anos. Com roteiro dele e de Marina Kurcis e arte de Mario Cau, a HQ começou na internet e ganhou versão impressa após financiamento coletivo.

A proposta é gerar identificação falando sobre o que é humano, diz Rob. “Nós não queremos responder às questões que abordamos, mas sim que o leitor se identifique e saiba que ele não está sozinho.”

Foi o que ocorreu com Angelo, que se identificou ao ler o quadrinho justamente quando ele mesmo fazia psicanálise. Outra semelhança foi ter conhecido a música They Call It Stormy Monday, de T-Bone Walker, dois dias antes de publicarem uma página da HQ com a letra da canção.

Além dos questionamentos, Terapia é embalada pelos sons do blues, estilo preferido do personagem, com referências a cantores e bandas. Um capítulo interessante da obra é o sete, totalmente dedicado ao passado das histórias em quadrinhos, em que cada página tem um modelo visual e narrativo diferente, homenageando um estilo ou autor renomado da história das HQs, desde o início do século 20. Uma verdadeira aula.

Quadrinhos de reflexão
Nessa linha de refletir sobre as próprias atitudes e valores por meio de bons quadrinhos, Angelo cita Retalhos, de Craig Thompson.

“Tudo que a gente faz, o corpo filtra. Esse quadrinho me fez pensar sobre meus relacionamentos e sobre ser cristão.”

Ele menciona outras HQs como Autocracia, um quadrinho complexo que mostra o carro como uma grande arma de matar, e V de Vingança, que fala de autoritarismo e o papel da polícia.

As HQs têm de fazer repensar o mundo ao redor, diz Túlio. “Não sei se todos os leitores leem dessa forma, mas eu sempre faço isso. Em várias histórias dos X-Men, por exemplo, as pessoas consideram os mutantes como ‘doentes’ por eles serem diferentes e querem ‘curá-los’ de alguma forma. Isso se assemelha muito com os preconceitos contra negros, gays, que vemos na vida real.”

História verdadeira em quadrinhos
Também é possível contar e aprender História por meio dos quadrinhos. Uma referência é MAUS, de Art Spiegelman (tem resenha aqui), em que é possível ter uma visão do holocausto judeu representado com animais. Gatos são os nazistas e ratos, os judeus.

Trecho de ‘MAUS’. Foto: Ludimila Honorato

Trazendo para mais perto e para a atualidade, a graphic novel Bando de Dois, de Danilo Beyruth, resgata um pouco do cangaço no nordeste do Brasil por meio de referências a Lampião e o papel de anti-herói dos cangaceiros.

“Como qualquer obra de arte, especialmente as ligadas a storytelling (narrativa), os quadrinhos permitem que você aprenda muito sobre história e sociedade. Claro que você não se torna um especialista ao ler um quadrinho sobre um assunto, mas isso não acontece também se você assistir a um filme ou seriado — ou mesmo ler um romance — sobre um fato histórico”, pondera Rob Gordon.

As histórias em quadrinhos possibilitam produção sobre vários temas e para vários propósitos. Estão desde nas tirinhas de jornais e revistas até material informativo sobre saúde e trânsito. São também uma alternativa de leitura para quem busca novas formas de narração. E tem espaço até na sala de aula. “Uma HQ flui melhor e pode ser um convite para o jovem se interessar mais por leitura”, diz Angelo Dias.

Gordon também acredita num futuro melhor para as histórias em quadrinhos. “Pode parecer difícil de acreditar, mas muitas pessoas ainda acham que HQs são coisas de crianças. Mas, aos poucos, esse cenário, felizmente, está mudando”, afirma.